domingo, 31 de agosto de 2014

Terror do EI ameaça acabar com idioma de Jesus Cristo

Cristãos iraquianos que fugiram da violência na aldeia de Qaraqush, a leste da província de Nínive, descansam na igreja São José, na cidade curda de Erbil, na região autônoma do Curdistão iraquiano
Cristãos iraquianos que fugiram da violência em Qaraqush descansam na igreja São José, na cidade curda de Erbil (Safin Hamed/AFP)
O violento avanço dos terroristas do Estado Islâmico (EI) está ceifando não apenas a vida dos iraquianos, mas também bens culturais. Um idioma ameaçado pela insanidade assassina dos jihadistas é o aramaico. O Iraque tem uma população de cerca de 20.000 pessoas, majoritariamente cristãos, que ainda falam o neo-aramaico assírio, evolução da língua usada por Jesus Cristo há mais de 2.000 anos. O prestigiado linguista americano Ken Hale certa vez afirmou que o prejuízo causado pela extinção de uma língua equivale à detonação de uma bomba no museu do Louvre. Em outras palavras, a morte de um idioma significa também o desaparecimento de um sistema cultural inteiro, com seus padrões de pensamento, oralidade, musicalidade e narração histórica.
Segunda as últimas estimativas disponíveis, ainda da década de 1990, portanto antes da Guerra do Iraque e da tensa ocupação americana, a população falante de aramaico no mundo era de 500.000 pessoas – sendo que metade vivia no norte iraquiano. Hoje os especialistas são unânimes em afirmar que a sondagem da década de 1990 era um exagero e que o quadro atual é desanimador. Estima-se que haja no mundo todo apenas 30.000 pessoas que falam aramaico, sendo que dois terços são iraquianos que habitam o norte do país.
A situação do aramaico ficou ainda mais delicada após a queda das cidades de Mosul, Qaraqush, Tel Kepe e Karamlesh, invadidas pelos jihadistas sunitas. Localizadas na província de Nínive, no norte do país, nessas cidades e em pequenas vilas próximas delas, estavam as únicas escolas primárias e secundárias de aramaico do Oriente Médio, que foram abandonadas às pressas. Segundo os especialistas, a existência de escolas regulares é uma condição sine qua non para a perpetuação de uma língua. Sem as instituições de ensino, a língua fica restrita somente a sua forma oral e enclausurada no ambiente familiar. Com isso, o idioma vai perdendo força rapidamente, podendo sumir em poucas gerações. Fugindo da morte, os cristãos falantes de aramaico dispersaram-se pela região. Os sobreviventes se refugiaram no Curdistão e umas poucas famílias mais abastadas foram para a Turquia. “Há cada vez menos crianças falando a língua. É uma queda considerável para uma língua que já foi universal”, atesta Ross Perlin, diretor da fundação Endangered Language Alliance, que estuda e tenta preservar idiomas ameaçados de extinção.

Segundo o professor Steve Fassberg, especialista em aramaico da Universidade Hebraica de Jerusalém, o desaparecimento do idioma seria particularmente prejudicial para aqueles que, como ele, estudam o cristianismo primitivo e o desenvolvimento do pensamento cristão após a fundação da Igreja Católica. A morte do aramaico atrapalharia também o estudo de outras línguas e dialetos semitas que são pouco falados ou já foram extintos no Oriente Médio, Norte da África e Ásia Menor. Ross Perlin lembra que o aramaico foi extremamente relevante ao longo da história. “O aramaico era o inglês da sua época, era a língua franca falada do Egito à Índia”, explica.

Profeta Jonas

Na lógica nefasta dos jihadistas sunitas que tentam criar uma nação teocrática islâmica em uma região entre o Iraque e a Síria, muçulmanos xiitas, cristãos, yazidis e outras minorias têm apenas três opções: converter-se, fugir ou serem mortos. Por onde o grupo passa, deixa para trás um rastro de ódio, violência e destruição: em Mosul, a segunda maior cidade iraquiana, os jihadistas destruíram a mesquita Nabi Younis, que estava construída sobre um sítio arqueológico de quase 3.000 anos, do século VIII a.C.
O local era conhecido por abrigar a tumba de Jonas, aquele que no Antigo Testamento é retratado como o profeta que foi engolido por uma baleia durante uma tempestade. A parábola da baleia é cultuada tanto pela tradição judaico-cristã como pela islâmica e o profeta Jonas é inclusive citado no Alcorão, o livro sagrado do Islã. Nabi Younis não foi o único templo destruído pelos jihadistas; eles também botaram abaixo a mesquita Imã Aoun Bin al-Hassan, em Mosul, e explodiram dezenas de igrejas católicas e locais sagrados sunitas por onde passaram no Iraque e na Síria. A desculpa para tamanha intolerância é sempre a mesma: os locais eram considerados pontos de apostasia da fé islâmica sunita.
Língua de Jesus – De acordo com os especialistas ouvidos pelo site de VEJA, a língua materna de Jesus – que também falava hebraico – era o aramaico, idioma que deixou marcas no Novo Testamento. Originalmente escrito em grego koiné (versão arcaica do grego), os livros que compõe a segunda parte da Bíblia cristã contêm palavras em aramaico ou derivadas do idioma de Jesus. Em uma passagem marcante do Evangelho de Mateus (27:46), por exemplo, Jesus, pregado na cruz, indaga: ‘Eli, Eli, lamá sabactâni?’ (Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste?). As palavras em aramaico resistem em muitas traduções atuais da Bíblia, inclusive em português.
Porém, como as línguas evoluem ao longo dos anos, o aramaico que Jesus falou não soaria como o aramaico falado hoje, conhecido pelos linguistas pela denominação de neo-aramaico assírio. “A linguagem se desenvolveu ao longo dos últimos dois mil anos e também foi influenciada pelo vocabulário de línguas muito próximas geograficamente, como o árabe, o turco e o persa”, explica Fassberg. Em 2004, o filme A Paixão de Cristo, uma sanguinolenta versão do astro hollywoodiano Mel Gibson para a via-crúcis, teve os diálogos em aramaico. Mas a empreitada atraiu críticas de linguistas e historiadores puristas justamente por levar à tela a versão moderna do idioma.

História – Com uma história que remonta há mais de 3.000 anos, a língua aramaica era falada por povos nômades que vagavam numa área que hoje é o território da Síria. Depois, o idioma se popularizou no Oriente Médio por ser a língua oficial do Império Assírio, um dos mais importantes da antiguidade, que dominou a região entre 2000 a.C. e 600 a.C.. Muitos séculos depois, no ano 4 a.C., o macedônio Alexandre, o Grande, conseguiu impor o idioma grego como língua oficial dos territórios que comandava – terras dos Balcãs, na Europa, à Índia, incluindo Egito, Mesopotâmia, Pérsia e outras regiões do Oriente Médio. Mesmo perdendo o status de idioma oficial, o aramaico sobreviveu e prosperou.
Na época de Jesus Cristo, o aramaico era uma das línguas mais faladas da região, junto com o hebraico e o grego koiné. Depois, com o aparecimento da língua árabe (por volta do século IV) e, sobretudo, com a ascensão do islamismo (no século VII), o idioma começou a perder força. Especialistas apontam que o aramaico perdeu relevância ao longo dos séculos porque não era associado diretamente a nenhuma religião e a nenhum império. Os impérios e califados islâmicos disseminaram a língua do Corão, o árabe; o Império Romano adotou o catolicismo como religião oficial e disseminou o latim, que por séculos ficou identificado como a língua dos católicos.


A perseguição dos terroristas do EI não é a primeira investida violenta contra os iraquianos católicos falantes de aramaico. Entre 1986 e 1989, o governo liderado por Saddam Hussein destruiu mais de 4.000 vilas de curdos, católicos e outras minorias no norte do país, numa tentativa de “arabizar” o Iraque. O ataque às minorias foi interrompido pela primeira Guerra do Golfo, em 1990. A criação da região autônoma do Curdistão, em 1992, representou um alento para as minorias, pois a região no norte do país passou a ser a mais segura, tolerante e próspera do Iraque.
Há no meio acadêmico especializado um debate sobre como chamar a língua em sua versão atual, de neo-aramaico assírio, siríaco ou apenas aramaico. De maneira geral, os linguistas tendem a se referir à linguagem falada como neo-aramaico e à escrita como siríaco. Porém, independentemente do nome, todos estão de acordo sobre o seu inestimável significado cultural e sobre a necessidade de preservá-la. Qualquer tentativa nesse sentido, contudo, dependerá do combate ao Estado Islâmico, que persegue com brutalidade seu plano de instalar um califado nos territórios da Síria e do Iraque pelos quais avança. 
Fonte: Veja

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